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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Natal "light" com 0% de açúcar

Sem açúcar, o arroz-doce é apenas arroz malandrinho com canela. A lampreia de ovos não passa de uma omeleta estranha. E as rabanadas são pão frito. Enquanto assistimos ao Natal dos Hospitais, na televisão, decorre, em nossas casas, o Natal dos Diabéticos.


A escassez de açúcar veio dar à crise um sabor ainda mais amargo - como era, aliás, previsível. Todos os dias surgem novos entraves ao consumo: ou os produtos existem mas nós não temos dinheiro suficiente para os comprar, ou até teríamos dinheiro para os comprar mas os produtos não existem. Um dos poucos artigos que ainda tínhamos poder de compra para adquirir desapareceu das prateleiras dos supermercados. Tenho sincera admiração pelo trabalho da Deco, em defesa do consumidor, mas creio que vai fazendo cada vez mais falta um organismo que defenda o aspirante a consumidor: um cidadão que até gostava de consumir mas, por um variado leque razões, não consegue.

Que a impossibilidade de comprar açúcar surja na época natalícia agrava, evidentemente, o transtorno. Seria como não poder comprar chocolate na Páscoa, ou álcool na Queima das Fitas. Sem açúcar, o arroz-doce é apenas arroz malandrinho com canela. A lampreia de ovos não passa de uma omeleta estranha. E as rabanadas são pão frito. Enquanto assistimos ao Natal dos Hospitais, na televisão, decorre, em nossas casas, o Natal dos Diabéticos. Sendo embora um modo de evitar que passemos a assistir ao Natal dos Hospitais ao vivo, não deixa de ser insípido.

Como sucede em todos os períodos de carência, é perante a escassez de açúcar que compreendemos mais claramente a importância que o produto tem na nossa vida. Espalhar açúcar na cama de um amigo, para lhe provocar aquela desagradável sensação de ter areia na cama ao deitar, é uma partida que milhares de pessoas se veem impossibilitadas de fazer. Substitutos como o sal, diga-se o que se disser, não resolvem o problema. E todos os dias deparamos com pormenores que nos recordam dolorosamente a falta de açúcar. O facto de o Pão de Açúcar não conseguir vender açúcar e de o Pingo Doce dispor apenas de adoçante são circunstâncias que contribuem para agudizar o problema através de uma ironia bastante irritante.

Por paradoxal que pareça, a escassez de açúcar também consegue fornecer aos portugueses uma ilusão de escape. É estranho, mas o facto de não podermos comprar certos produtos essenciais dá-nos a sensação de que a crise esmoreceu. Pode não haver dinheiro para férias ou viagens, mas os portugueses vão sentir-se a passar o Natal na Roménia dos anos oitenta. Sem se sair do sítio, viaja-se no espaço e no tempo. O bilhete da viagem é uma senha de racionaonamento.
Ricardo Araújo Pereira

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