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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Se fosses só três sílabas já era bem bom

O leitor conhece aquele tipo de cronista irritante que aproveita todas as viagens para nos comunicar onde esteve e para se pôr a gabar o estrangeiro com o objectivo evidente de depreciar Portugal? Estava aqui a passear nas ruas de Nova Iorque, que é tão bela e muito mais organizada que o nosso país, e pus--me a pensar nisso. Para dizer a verdade, é fácil cair na tentação. Uma pessoa sai de Portugal e vê coisas que funcionam, ideias que resultam, economias que progridem. E pensa: então mas eu sou compatriota disto ou dos maus hospitais, dos tribunais lentos e do Valentim Loureiro? Não é difícil começar a acreditar que se nasceu no país errado. Não é o meu caso. Os países civilizados, para mim, são como o circo ou os lupanares: é agradável visitá-los de vez em quando, mas eu não quereria viver lá. Nova Iorque é, nesse aspecto, uma cidade exemplar. Há que desconfiar de um sítio em que é possível encontrar tudo - menos tremoços. Talvez seja por isso que lhe chamam "a cidade que nunca dorme". Muita gente não deve conseguir pregar olho a pensar no bem que lhe saberia uma imperial com um pires de tremoços. O leitor lembra-se do poema do fecho eclair, do António Gedeão? É sobre o rei espanhol Filipe II, que tinha tudo. Menos um fecho eclair, que apesar de corriqueiro ainda não tinha sido inventado. Ora, eu não sei há quantos anos existem tremoços, mas estou quase certo de que foram inventados antes do fecho eclair. A tragédia de Nova Iorque é maior que a de Filipe II.

É por isso que, enquanto os outros cronistas acham que Portugal não os merece, eu acho que não mereço Portugal. O país é bom demais para mim. Há muito bom teatro em Nova Iorque, é verdade. Mas não há arroz de cabidela. As livrarias são óptimas. Mas as pessoas falam uma língua bárbara. O leitor viu o que se passou no último Vitória de Setúbal-Benfica?

O Luisão e o Katsouranis desentenderam-se e começaram a gritar um com o outro. O mais interessante é que, vendo pela televisão, conseguia perceber-se que o Katsouranis estava a insultar o Luisão em português. Note o leitor: trata-se de um grego, e além disso estava a recomendar ao outro certas práticas que, segundo consta, eram muito populares e apreciadas no país dele, durante a Antiguidade. Tudo se conjugava para que Katsouranis fizesse a sugestão em grego, mas optou por fazê-la no nosso doce idioma. Até fiquei com lágrimas nos olhos. Mas eu sou assim: cinco minutos longe de Portugal e começo a ficar com saudades do Valentim Loureiro. Cinco minutos talvez seja exagero. Que sejam dez. De meia hora não passa.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Presidenciais: um balanço linguistico

As eleições presidenciais do passado fim de semana trouxeram à linguística o mesmo que haviam trazido à política: nada de novo. Limitaram-se a confirmar tendências. Quase todos os candidatos fizeram mais uma vez referência às dificuldades por que passam as pescas, setor de atividade que continua a ser o único a merecer um plural: não é a pesca, são as pescas. Nenhum quadrante ideológico se preocupa com as agriculturas, ou com as educações, mas as pescas são, ao que parece, de uma multiplicidade que provavelmente explica a razão de serem mais atreitas a problemas.

As queixas de um dos candidatos acerca dos "mídia" vieram reforçar uma espécie de preceito ligeiramente babilónico que estipula que as palavras de uma língua sejam pronunciadas com sotaque de outra. "Mídia" mais não é do que a palavra latina "media" pronunciada com sotaque inglês. Se optasse pela pronúncia correta "media", o candidato estaria apenas a revelar ao eleitorado que sabia latim. Pronunciando "mídia", mostra que sabe latim e inglês - só com uma palavra. É o máximo de erudição com o mínimo de meios, o que pode constituir vantagem política na medida em que documenta uma capacidade extraordinária para a gestão e aproveitamento de recursos.

Nas assembleias de voto, registou-se fenómeno semelhante. Por causa dos problemas levantados pelo cartão do cidadão (problemas cuja responsabilidade é da administração interna, e não, como sucede com as pescas, das administrações internas), vários eleitores tiveram de se dirigir a uma sala especial, onde um funcionário da junta de freguesia os intimou a retirarem um "tiquê". "Tiquê" é, na tradição de "mídia", uma palavra de uma língua pronunciada com o sotaque de outra. Trata-se da palavra inglesa ticket dita com sotaque francês. "Tiquê." Acaba por ser milagroso que um povo que pronuncia palavras latinas à inglesa e palavras inglesas à francesa consiga, ainda assim, fazer-se entender.

Estas questões, que ao leitor talvez pareçam insignificantes, são verdadeiramente importantes - quer linguística quer politicamente. Respeito quem diz "camião", e nada me move contra quem diz "bidon". Mas não confio numa pessoa que me diga: "Tenho o camião cheio de bidons." Toda a incoerência, a incapacidade de seguir um rumo e a falta de caráter de uma pessoa estão reveladas na frase: "O biberon sujou-me o edredão." Quem diz "camião" tem de dizer "bidão", bem como quem diz "biberon" deveria ser, ética e gramaticalmente, obrigado a dizer "edredon". Se houvesse justiça, seria mesmo fisicamente impossível que um biberon sujasse um edredão, e que um biberão sujasse um edredon. No entanto, certos referentes, em manifesta falta de respeito para com os significantes acabados em "ão", sujam outros referentes que, por serem designados através de significantes acabados em "on", deveriam estar imunes à sujidade provocada pelos referentes anteriormente referidos - como aliás me parece claro e evidente.

Ricardo Araújo Pereira

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

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