O leitor conhece aquele tipo de cronista irritante que aproveita todas as viagens para nos comunicar onde esteve e para se pôr a gabar o estrangeiro com o objectivo evidente de depreciar Portugal? Estava aqui a passear nas ruas de Nova Iorque, que é tão bela e muito mais organizada que o nosso país, e pus--me a pensar nisso. Para dizer a verdade, é fácil cair na tentação. Uma pessoa sai de Portugal e vê coisas que funcionam, ideias que resultam, economias que progridem. E pensa: então mas eu sou compatriota disto ou dos maus hospitais, dos tribunais lentos e do Valentim Loureiro? Não é difícil começar a acreditar que se nasceu no país errado. Não é o meu caso. Os países civilizados, para mim, são como o circo ou os lupanares: é agradável visitá-los de vez em quando, mas eu não quereria viver lá. Nova Iorque é, nesse aspecto, uma cidade exemplar. Há que desconfiar de um sítio em que é possível encontrar tudo - menos tremoços. Talvez seja por isso que lhe chamam "a cidade que nunca dorme". Muita gente não deve conseguir pregar olho a pensar no bem que lhe saberia uma imperial com um pires de tremoços. O leitor lembra-se do poema do fecho eclair, do António Gedeão? É sobre o rei espanhol Filipe II, que tinha tudo. Menos um fecho eclair, que apesar de corriqueiro ainda não tinha sido inventado. Ora, eu não sei há quantos anos existem tremoços, mas estou quase certo de que foram inventados antes do fecho eclair. A tragédia de Nova Iorque é maior que a de Filipe II.
É por isso que, enquanto os outros cronistas acham que Portugal não os merece, eu acho que não mereço Portugal. O país é bom demais para mim. Há muito bom teatro em Nova Iorque, é verdade. Mas não há arroz de cabidela. As livrarias são óptimas. Mas as pessoas falam uma língua bárbara. O leitor viu o que se passou no último Vitória de Setúbal-Benfica?
O Luisão e o Katsouranis desentenderam-se e começaram a gritar um com o outro. O mais interessante é que, vendo pela televisão, conseguia perceber-se que o Katsouranis estava a insultar o Luisão em português. Note o leitor: trata-se de um grego, e além disso estava a recomendar ao outro certas práticas que, segundo consta, eram muito populares e apreciadas no país dele, durante a Antiguidade. Tudo se conjugava para que Katsouranis fizesse a sugestão em grego, mas optou por fazê-la no nosso doce idioma. Até fiquei com lágrimas nos olhos. Mas eu sou assim: cinco minutos longe de Portugal e começo a ficar com saudades do Valentim Loureiro. Cinco minutos talvez seja exagero. Que sejam dez. De meia hora não passa.
Por baixo da capa, um imenso mar se alarga, fluindo em cada folha solta, por novos mundos, em contínua criação,Por baixo da capa, nada escapa, à universal lei da atracção, que prende a vida aos sonhos, o poema aos versos, a obra ao criador,Por baixo da capa, há sempre um postigo, pronto a desvendar, mistérios incontáveis, e trilhos insondáveis, de novas descobertas, Por baixo da capa, há sempre algo novo, mapa do tesouro, à espera de alguém, disposto a sonhar. Hélder Martins
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